domingo, 17 de outubro de 2021

A diferença entre ser e fazer um Ironman

 

 
Silvio Marques, via Publique!


Escrevi dez anos atrás e mantenho meu pensamento.

Existe uma diferença muito grande entre "ser" e "fazer" um Ironman.

Tenho a percepção de que realizar uma prova como o Ironman requer um comprometimento que vai além da disciplina com os treinos.

Abdica-se de família, de lazer, de trabalho, de saúde, etc.

Durante o período em que o atleta está focado na preparação de uma prova como essa, se evidencia seu alter ego, alheio às suas vontades próprias, distinto do original.
Invariavelmente, uma fera indomável.

Se você encontrar um desses por aí, saiba que esse será sempre um Ironman.
Invariavelmente, são Triathletas na essência, nada aventureiros.

Construíram uma história desde as provas mais curtas, passando por provas olímpicas, provas de metade de distância Ironman, até se tornarem Triathletas completos.

E essa definição nada tem a ver com qualidade ou nível de performance e sim com o comprometimento passional com o esporte.

Existe uma outra tribo, menos comprometida com o Triathlon, em que se estabeleceu o Ironman como um troféu a ser conquistado, um desafio pessoal.

Invariavelmente, os atletas ultrapassam diversas etapas de uma programação normal, para alcançarem seus objetivos.

Treinaram, sabe-se lá como e quanto.
Foram lá e completaram suas provas, e muitas vezes até muito bem.

Mas simplesmente fizeram um Ironman.
Provaram que é possível, que não é algo inalcançável, pegaram suas medalhas e voltaram para suas casas com o desafio cumprido.

Fizeram uma prova na distância Ironman, mas estarão sempre longe de afirmarem ser na essência um Triathleta de longas distâncias.

Algo apenas existencial e mais nada.

Tenho aqui, em minha casa, a medalha de finisher e o número de peito, no porta-treco da parede.

Guardei medalha, certificado, sacolas, camiseta, números de peito, tudo em uma caixa de arquivos de fotos.
E lá estão até hoje...
Vez ou outra, limpo tudo e guardo novamente.

Estampei a marca "M" dentro do meu coração e na minha mente, porque a realização foi minha e o mundo não precisa ficar sabendo.

Existem aqueles que preferem eternizar em seus corpos essas conquistas pessoais.
Desejo pessoal de cada um, e isso nada tem a ver com SER ou FAZER um Ironman.
Quando falamos de essência, falamos de muito mais do que objetivos.
Falamos de estilo de vida, de prazer cotidiano, padrão e modelo.

Nos tempos de sofrimento em Porto Seguro (onde banheiro era o coqueiro da estrada, ambulância só pra acompanhar o último atleta, e massagem no final era objeto de troca de toalhinhas e garrafinhas), o apetite dos Triathletas era outro.

As bikes eram outras, sunga e camiseta eram o uniforme padrão, e o sangue nos olhos da grande maioria corria solto.

Hoje, o Triathleta deixou de ser competitivo e passou apenas a ser participativo.
Gasta-se mais em equipamentos para uma única prova no ano, do que gastávamos para competir o ano inteiro, há vinte e cinco anos atrás.

Mas, não podemos tirar os sonhos das pessoas, como dizia Jim Ward, 76 anos, finalizando sua última prova em Kona.

Enquanto caminhava na Palani, prestes a completar seu Ironman, ele disse ao repórter que o acompanhava e o questionava se seus esforços estavam valendo o sofrimento naquela idade:

"Take a man's dreams and he'll be dead".
(Tire os sonhos de um homem e ele estará morto).

O senhor Jim Ward faleceu em 2000, fazendo o que amava, durante um treinamento de ciclismo, aos 83 anos, em Boulder, Colorado.
Foi encontrado caído na estrada sozinho e a autópsia mencionou possível ataque cardíaco como a causa de sua morte.

Wolfgang Dittrich, grande nadador alemão e grande inspiração dos Triathletas dos anos 80, afirmava:

"Nunca se está tão vivo, quanto se está perto da morte".

Hoje são poucos os que passam por esses momentos, enfrentam esses riscos e desafios.

Longe de julgar alguém, mas, me parece que o Triathlon de longa distância hoje se tornou sinônimo de status e ostentação.

Particularmente, minha vida não mudou por causa do Ironman.

Eu não me tornei uma pessoa melhor, mais organizada, mais focada, e nenhuma outra centena de clichês que milhares de atletas usam após completarem uma prova Ironman.

Pelo contrário, descobri que não tenho paciência e disciplina para suportar longas rotinas de treinamentos, fator fundamental para quem queira competir buscando "performance" nessas competições.

O IRONMAN, se me deixou algum ensinamento, foi o de respeitar os meus limites e não extrapolá-los.

Pagam um preço muito alto aqueles que se aventuram sem uma disciplina.
O IRONMAN não aceita desaforos.

Há de se respeitar cada história de vida, de cada competidor VERDADEIRO.
Esse é apenas o "meu" modo de enxergar a simplicidade do day after.

Silvio Marques


 
Agradecimentos ao Silvão, meu Treinador, por esta contribuição.
 
3AV
Marco Cyrino

 

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4 comentários:

  1. Boas, não faço questão de fazer um iron. Sei do sofrimento que meus amigos passaram. Não digo nunca farei, quem sabe, não sei.kkkk
    Eu amo o esporte, por isso faço a mais de 30 anos.
    Abraço

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  2. Legal Marcão! Mais compartilhamento bem bacana de um cara cheio de histórias e experiência em nosso esporte! Comecei lá atrás no Triathlon, aproveitei e aproveito todas as distâncias. Gosto e respeito todas! Um short e um iron devem ser respeitados e valorizados. Em 2022 espero largar novamente e curtir com os amigos. Abs!

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    Respostas
    1. Grande Fernando. Maior respeito por esse cara. Respeito por tudo. Ano que vem vamos largar juntos. Quer dizer, juntos não. Minha categoria não é a mesma que a tua. Mas nas mesma prova.

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